Este link é dedicado à compilação de materiais do projeto Evolução e saúde humana - EvoS, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
A Hipótese da Incompatibilidade (Armadilha Evolutiva)
A hipótese de incompatibilidade, ou armadilha evolutiva, mais conhecida pelo termo em inglês evolutionary mismatch, propõe que mudanças no ambiente podem impor ao organismo uma nova realidade para a qual ele está, evolutivamente, mal adaptado. Características que proviam um fenótipo adaptativo no ambiente ancestral, agora podem contribuir para o desenvolvimento de doenças.
Um exemplo clássico de sua aplicação é a hipótese do genótipo de economia. Propõem-se que nossos ancestrais teriam passado por períodos de fartura e escassez ao longo de seu processo evolutivo. Este desafio ambiental teria, como consequência, exercido uma pressão seletiva, promovendo um fitness aumentado para aqueles organismos dotados de maior capacidade para armazenamento de grandes estoques de energia. Nossos principais estoques de energia são o tecido adiposo, que aloca calorias extras na forma de triglicerídeos, e o fígado, que o faz por meio da síntese de glicogênio. O músculo esquelético também possuí estoque de glicogênio, contudo, seu uso é restrito ao próprio tecido muscular.
Atualmente, no mundo pós revolução industrial, temos um ambiente com oferta continuada de alimentos. Ademais, parte significativa dos alimentos mais consumidos hoje em dia são extremamente ricos em calorias, apesar de pobres nutricionalmente. Somam-se à isso os avanços tecnológicos, que reduzem de maneira significativa a necessidade de esforço físico para atividades cotidianas. A hipótese da incompatibilidade propõe, então, que na atualidade organismos adaptados à períodos de escassez, que precisavam gastar energia na procura constante por alimentos, e que desenvolveram grande habilidade em estocar energia, estão agora expostos à um novo ambiente, com excesso de calorias. O que seria uma possível explicação para a grande incidência e prevalência de obesidade no mundo.
Gostaria de saber mais? Uma boa leitura é o artigo Evolutionary Perspectives on the Obesity Epidemic: Adaptive, Maladaptive, and Neutral Viewpoints, a partir do qual as imagens acima foram adaptadas.
Evolução Biocultural (Coevolução Gene-Cultura) - Intolerância à lactose.
Quando falamos em ambiente, podemos fazer referência ao "ambiente natural", bem como aquele ambiente alterado pela espécie que nele habita. A espécie humana tem alterado de modo intenso o ambiente terrestre, ao ponto de surgirem propostas para a criação de uma nova época geológica moldada pela humanidade, o Antropoceno. Além disto, as práticas culturais humanas também constituem um tipo de ambiente que estabelece desafios adaptativos à nossa biologia. Quando este processo adaptativo incluí mudanças nas frequências alélicas de uma população, estamos diante de um processo evolutivo que ocorreu por uma complexa interação entre biologia e cultura. Este fenômeno é denominado evolução biocultural, ou coevolução gene-cultura.
Um exemplo interessante deste processo é a intolerância à lactose. A enzima lactase é responsável por degradar o açúcar do leite, a lactose, em glicose e galactose. Na espécie humana este gene é desativado ainda na infância, não muito tempo após o desmame. Portanto, a maior parte das pessoas não é capaz de digerir apropriadamente este açúcar, e a ingestão de leite pode causar vários sintomas gástricos desconfortáveis como cólicas, gazes e diarréia. A depender do grau de intolerância, o consumo do leite pode levar a desidratação grave, e até mesmo colocar crianças em risco de morte.
Contudo, quando se avalia como a intolerância à lactose está distribuída no planeta, surge um dado interessante. Algumas populações no mundo são capazes de digerir plenamente este açúcar, apresentando, portanto, tolerância à lactose. A presença deste traço é coincidente geograficamente com populações que possuem longo histórico de pecuária leiteira e que, portanto, tem no leite um componente muito significativo em sua alimentação.
Um dado notório é que, em diferentes populações, geograficamente separadas, em que a tolerância à lactose é observada, foram identificadas novidades genéticas diferentes, mas que desencadearam a mesma adaptação. Portanto, este é um exemplo de convergência evolutiva na espécie humana. Essas novidades são mutações que ocorreram não diretamente no gene da lactase, mas em regiões reguladoras de sua expressão.
Saiba mais sobre este tema lento o artigo Lactose intolerance: diagnosis, genetic, and clinical factors, que é a fonte da imagem acima. Leiactambém Evidence of still-ongoing convergence evolution of the lactase persistence T-13910 alleles in humans.
Evolução Biocultural (Coevolução Gene-Cultura) - Adaptação à hipóxia.
Ainda no tema evolução biocultural, vejamos um exemplo adicional. O caso de uma população que desenvolveu adaptação para mergulho prolongado.
Os Bajau são uma população nômade que habita a Malásia, as Filipinas e a Indonésia. Vivem em barcos-casas e sua estratégia de subsistência incluí mergulhos profundos e demorados, podendo chegar à 70 metros de profundidade, e durar até 13 minutos. Os primeiros estudos sobre estes notórios mergulhadores demonstrou que possuem o baço até 50% maior que pessoas da população Saluan. Os Saluan são um grupo que habita regiões próximas, vizinhas aos Bajau, mas que não praticam o mergulho como estratégia de subsistência, pois são agricultores.
O baço funciona como um reservatório de glóbulos vermelho oxigenados, e seu tamanho aumentado pode elevar a disponibilidade de oxigênio no sangue durante o mergulho. Este dado sugeria aos pesquisadores um possível processo de seleção natural, o que também era evidenciado pelo fato de que, nesta população, tanto mergulhadores quanto não mergulhadores possuem baço aumentado. Ou seja, o traço não parece ser resultado apenas de adaptação fisiológica ao treinamento de mergulho. De fato, pesquisas adicionais demonstraram que os Bajau possuem uma mutação em um gene (PDE10) que controla a produção de hormônios da glândula tireóide (T3/T4). Em modelos animais este hormônio é responsável por estimular o crescimento do baço, fazendo esta mutação se destacar como uma candidata importante a explicar as origens deste traço.
Saiba mais sobre este tema no artigo Physiological and Genetic Adaptations to Diving in Sea Nomads.
Variabilidade biológica humana - A cor da pele
A variação na cor da pele humana é talvez o traço fenotípico mais utilizado no debate público sobre nossa variabilidade enquanto espécie. De fato, a cor da pele já foi causa das mais horrendas atrocidades cometidas entre seres humanos. E a variabilidade biológica visível continua, muitas vezes, sendo utilizada como justificativa para preconceito e segregação, não obstante a inexistência de raças humanas para a ciência da biologia.
Entender como a variação da cor da pele está distribuída pelo planeta, e entender as suas origens evolutivas, é uma boa forma de estudarmos evolução humana e também uma oportunidade ímpar para explicar que a variabilidade biológica humana apresenta distribuição clinal. Ou seja, está organizada de forma contínua, e não de forma discreta.
Quando olhamos para a cor da pele de pessoas de diferentes regiões do mundo, salta aos olhos a riqueza desta variação, fato que exemplifica de maneira ímpar o quanto somos diversos. Mas será que esta variação na cor de pele possui relações com a evolução de nossa espécie?
As pesquisas sobre este tema demonstraram que a variação da cor de pele apresenta uma relação geográfica com a incidência da radiação ultravioleta. Em outras palavras, nos locais de maior exposição à radiação UV, as tonalidades de pele tendem à escurecer. Enquanto o inverso ocorre nos locais de menor radiação. Portando, o traço apresenta uma clara distribuição latitudinal. Qual seria a relação da radiação ultravioleta e a cor da pele?
De maneira resumida, a cor da pele é dada pelo pigmento melanina. Peles mais escuras apresentam mais melanina, e pelas mais claras apresentam menos melanina. Quando os pesquisadores começaram à investigar o papel da melanina em regiões geográficas de elevada incidência de radiação UV, a primeira e mais óbvia hipótese parecia ser um possível papel de proteção exercido por este pigmento. Considerando que a radiação ultravioleta é mutagênica e pode desencadear câncer, faria sentido pensar que esta doença, uma vez manifesta, funcionaria como uma potente pressão seletiva. Contudo, o câncer é comumente uma doença tardia, o que possibilita que um indivíduo tenha tempo suficiente para chegar a maturidade reprodutiva. E, se um dado fator não interfere na capacidade reprodutiva, ele não promove seleção. Esta afirmação está simplificada, mas é suficiente para o tema em discussão.
Outra possibilidade seria o impacto da radiação UV na termorregulação. Causando queimaduras na pele, comprometeria o funcionamento das glândulas sudoríparas. Também esta hipótese não ganhou muita sustentação. Finalmente, hoje existe um amplo conjunto de dados que apontam para o folato como o principal fator explicativo para a elevada concentração de melanina em populações muito expostas à radiação UV. Esta radiação promove destruição do folato, o qual, em homens, tem papel importante na produção de espermatozóides. |Já em mulheres grávidas, o folato apresenta papel fundamental no desenvolvimento do tubo neural. Protegê-lo é fundamental para a sobrevivência da espécie.
Por outro lado, a radiação UV também é essencial para a produção de vitamina D pelo organismo. Deste modo, possuir muita melanina em um ambiente de baixa incidência UV reduziria o fitness do organismo. Estes seriam os mecanismos que teriam levado à peles mais escuras nas regiões geográficas mais próximas à linha do equador, e peles mais claras conforme nos afastamos desta área.
Finalmente, a cor da pele humana apresenta uma variabilidade clinal. Das mais claras às mais escuras, temos um dado contínuo. Tentar agrupar humanos com base na cor da pele, sob o argumento de utilização de um traço biológico, ignora a imensa variabilidade de nossa espécie, e faz vistas grossas para a clara necessidade de utilização de critérios arbitrários para definição dos agrupamentos. Olhe a imagem acima e separe mentalmente as pessoas, segundo suas cores de pele. Quantos agrupamentos você criou? Você consegue pensar em um critério objetivo para inserir ou retirar indivíduos dos grupos que pensou? Ou seus critérios foram arbitrários?
Saiba mais sobre este tema no texto The Evolution of Skin Color. Leia também Biophysical evidence to support and extend the vitamin D-folate hypothesis as a paradigm for the evolution of human skin pigmentation.
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