Não existem critérios biológicos válidos para agrupar os seres humanos em diferentes raças. Apesar da grande diversidade fenotípica, geneticamente nossa espécie é deveras homogênea, o que se deve à história evolutiva ser muito recente para o táxon dos humanos. De fato, a diversidade genética entre os humanos é tão pequena que constituímos uma única e indivisível espécie, a espécie Homo sapiens.
No entanto, o observador atento verificará alguns fenômenos epidemiológicos que podem aguçar a tentação de tentar classificar pessoas racialmente. Tomemos por exemplo o padrão de mortalidade e morbidade por doenças que apresentam contornos populacionais. Algumas inclusive se sobrepondo à características fenotípicas dos indivíduos. Neste critério se enquadram a expectativa de vida, a mortalidade infantil, e a mortalidade por doenças cardiovasculares, diabetes, doença renal, câncer e acidente vascular cerebral nos Estados Unidos. Para todas estas patologias, pessoas negras apresentam taxas mais elevadas que pessoas brancas ao longo da série histórica de coleta dos dados, a qual possui mais de um século de informações. Adicionalmente, dados do IBGE mostraram que, no Brasil, mais pessoas negras morreram de COVID-19 que pessoas brancas.
Estas análises naturalmente ensejam o questionamento: se não existem raças humanas, como podemos interpretar este tipo de dado? Para isso, precisamos fazer uma abordagem biocultural e evolutiva de nossa espécie, e compreender como nos adaptamos aos diferentes ambientes nos quais, historicamente e pré-historicamente, vivemos. Ademais, é necessário entender como fenômenos de natureza cultural podem impactar de modo significativo nossa biologia. Notadamente, o preconceito racial, baseado em construções sociais, têm evidente impacto negativo na saúde das populações que sofrem como vítimas deste fenômeno.
Classificar é preciso! Nós, humanos, organizamos as informações do mundo natural e social para que possamos melhor entendê-lo e estudá-lo. E este é um empreendimento arriscado! Classificações não fazem parte do mundo real mas, antes, constituem uma construção da mente humana. Naturalmente, sendo um produto da nossa imaginação, as classificações estão sujeitas à erros, simplificações exacerbadas, e podem, inclusive, ter consequências na nossa própria forma de ver o mundo, na medida em que as classificações também criam paradigmas a partir dos quais construímos nossas teorias: os paradigmas epistemológicos. Na disciplina de evolução humana e ecologia humana que ministro na universidade, costumo pedir aos estudantes que deem um conceito de ser humano. Após alguns minutos de esforço intelectual, dispenso os alunos da tarefa, e proponho a seguinte reflexão: “Notem que curioso, vocês tiveram uma certa dificuldade em propor um conceito de ser humano. Mas eu tenho a mais absoluta certeza de que, ao saírem por aquela porta, vocês serão extremamente hábeis em identificar o primeiro ser humano que passar na sua frente. Em parte, este problema decorre do fato de que os seres humanos estão caminhando por aí, como um dado patente da realidade. Por outro lado, o conceito de ser humano não se encontra em nenhuma esquina, mas é um produto da nossa imaginação. Uma tentativa de organizarmos os dados da realidade que nos cerca. Uma tentativa de classificarmos.”
Evidentemente as classificações são importantes, pois sem elas simplesmente não é possível praticar a ciência, uma atividade cuja essência envolve “recortar” pedaços da realidade para seu estudo. Não obstante, ter consciência das limitações de nossos sistemas de classificação e, mais importante, mantermo-nos sempre atentos à necessidade de revisão destes sistemas, é fundamental para uma prática científica verdadeiramente sujeita ao constante teste de hipóteses.
Foi o impulso classificatório que levou ao surgimento dos primeiros modelos tentativos de organização da diversidade humana. Em 1350 os egípcios já classificavam as pessoas em função da cor de sua pele. Vermelho para os egípcios. Amarelo para os povos do leste. Branco para os povos do norte. Preto para a África subsaariana. A exploração do novo mundo levou a uma série de empreendimentos classificatórios, como decorrência do contato com grupos humanos até então desconhecidos pelos europeus, e que possuíam características culturais, sociais e fenotípicas distintas. Mas foi a partir do século XVIII que o processo classificatório ganhou contornos de maior formalidade.
O modelo tipológico de classificação foi o que marcou os séculos XVIII, XIV e XX, e baseava-se em critérios fenotípicos como a cor da pele, a forma do cabelo e a forma corporal. O naturalista Carolus Linnaeus foi um importante influenciador deste paradigma, sugerindo em sua obra Systema Nature, edição de 1767, a existência dos seguintes tipos humanos: Homo sapiens europaeus : Branco, sério, forte; Homo sapiens asiaticus: Amarelo, melancólico, avaro; Homo sapiens afer: Negro, impassível, preguiçoso; Homo sapiens americanus: Vermelho, mal-humorado, violento
Já o médico Johan Blumenbach, em 1795, na obra On the natural Variety of Mankind, propôs as seguintes classificações, baseadas em análises comparativas do crânio: Caucasiano - Europa e áreas adjacentes do oeste asiático; Europeus – Homens ideais. Imagem e semelhança de Deus. Demais grupos seriam resultado de degeneração; Mongolóides Maior parte da Ásia, incluindo China e Japão; Etíopes Africanos de pele escura; Malaios Nativos australianos das ilhas do pacífico e outros.; Americanos Américas.
Não é preciso dissertar para demonstrar as premissas preconceituosas patentes nas classificações acima. O modelo tipológico está na gênese do surgimento do chamado racismo científico, uma mancha na história da humanidade e da ciência. Tratava-se, na verdade, do uso de uma pseudociência, a frenologia, para separar tipos humanos baseados na morfologia craniana. Ademais, era praxe a falsificação de representações comparativas de crânios humanos. Por exemplo, tornou-se famoso um desenho obviamente fraudulento que, alegadamente, demonstraria similaridades de crânios europeus com a escultura grega de Apolo de Belvedere, enquanto africanos eram apresentados com semelhanças aos chimpanzés, um grupo primata africano. Outros empreendimentos nocivos que não podem ficar fora do registro foram a eugenia, de Francis Galton, e o darwinismo social, de Herbert Spencer.
A partir de 1940 surgem as tentativas de explicar a variação humana com base no isolamento reprodutivo, com o modelo populacional. Já a partir de 1950 a modelo de clines vai propor que a variação humana não apresenta distribuição discreta, mas clinal. Ou seja, que as características mudam de maneira gradativa através das áreas geográficas. O fato é que todas as tentativas de agrupar a diversidade humana com contornos que separam os seres humanos em diferentes tipos biológicos falharam de maneira absoluta. Nunca houve um consenso sobre qual seria o número total de raças humanas, ou sobre quais deveriam ser os critérios escolhidos para definir uma suposta raça. A diversidade biológica humana é um fato, um dado da realidade. Ela apresenta distribuição e organização complexa, é produto de profundas relações ecológicas que desencadearam adaptação por meio de variação genética (evolutiva), ontogenética (de desenvolvimento) e fisiológica (adaptação de curto prazo). Veja aqui, aqui, aqui e aqui sobre as origens da diversidade biológica huamana. Contudo, definitivamente, a diversidade biológica humana não sustenta a existência de raças dentro da nossa espécie.
O conceito de raça começa a ser utilizado no século 16, e sua aplicação têm uma clara origem colonialista quando, no século XVIII, passou a ser utilizada para classificar pessoas nas colônias inglesas. A partir daí, o conceito segue sendo ajustado e utilizado em discursos justificadores para a dominação de países e a escravidão de pessoas. O termo raça não serve como sinônimo para agrupamentos genéticos. Também não serve como sinônimo de ancestralidade. Mas, evidentemente, raça não pode ser entendida como “apenas” um mito. A ideia de raça está imbrincada no imaginário social, e as pessoas tratam umas às outras de maneira diferente, em função de crenças sobre algum tipo de essencialidade biológica. Este fenômeno é tão penetrante na sociedade que nossas próprias instituições refletem o racismo institucionalizado. O fato é que as pessoas acreditam na existência de raças! E as comunidades que sofrem como vítimas de preconceito racial não apenas estão expostas à vulnerabilidade social, cutural, política e econômica, mas, literalmente, refletem em sua biologia as consequências nefastas deste fenômeno.
Os seres humanos, desde seu genoma, passando pelas células, órgãos e sistemas fisiológicos são organismos biológicos que habitam um ambiente ecológico complexo. Experimentam a vida enquanto indivíduos, enquanto sociedade, dentro de um contexto físico, com estrutura cultural complexa, que interage com uma política econômica e com uma ecologia global. Todos estes níveis estão, em alguma medida integrados. Afetam uns aos outros desde a gestação, passando pela infância, a adolescência, a vida adulta e a velhice. Hoje sabemos, por exemplo, que alterações epigenéticas durante a gestação modulam a biologia do organismo na vida adulta, e muitas vezes tais efeitos podem ser passados para mais de uma geração posterior. Crianças com baixo peso ao nascer, por exemplo, estão em maior risco de desenvolver obesidade e doenças cardíacas quando adultas. O estresse e a exposição à doenças infecciosas afetam o desenvolvimento físico e cognitivo das crianças. As doenças crônicas relacionadas à toda uma vida de alimentação de baixo custo e nutricionalmente pobre causa morbidade, eleva o custo de vida e reduz a capacidade de trabalho. Estes são alguns dos processos por meio dos quais a raça, um construto social, se transforma em biologia.
Em uma sociedade racializada as pessoas são excluídas e discriminadas por, supostamente, pertencerem à um determinado grupo biológico. As pessoas são tratadas de maneira sub-humana, e o direito de acesso aos direitos mais fundamentais são negados em função da cor da pele. Diuturnamente, uma gestante passa por situações de estresse emocional e de insegurança física, alimentar e de moradia por ser negra. Uma criança cresce à margem da sociedade, com alimentação inadequada, acesso precário ao sistema de saúde e de educação. Uma sociedade na qual as desigualdades sociais se perpetuam, impedindo acesso ao ensino e bloqueando a mobilidade social, gera bolsões de pessoas que não se conectam por laços genéticos, mas pelo compartilhamento das desigualdades sociais. Deste modo, não obstante a absoluta inexistência de fundamentos objetivos para a classificação da espécie humanas em subespécies (termo técnico para raça), é patente que a raça está presente na realidade da vida diária como uma ideia, uma suposição, um conceito socialmente construídos. Raça, portanto, atua como um fenômeno biossocial que afeta os corpos humanos de modo implacável, acachapante, modulando a biologia humana desde a gestação até a morte.
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